Tal como um sistema de pesos e medidas,
existe uma proporção entre a falta de acessibilidade nas ruas e as
manifestações de solidariedade, apoio e estranheza que eu recebo e sinto nas pessoas.
Sempre haverá a pedra portuguesa solta, colocada em nosso caminho. Isso me
mantém ligado, e me obriga a sempre ficar alerta. Mas o que falar da reação de
espanto que muitas pessoas têm ao nos verem na noite, curtindo uma festa, por
exemplo?
O andador movido por alguém relativamente novo
(estou com 36 anos) é uma cena que ainda mexe com os outros. Com a cadeira de rodas,
enquanto circulava sozinho, eu absorvia um painel de emoções pesadas dirigidas
a mim. Eram olhares sufocantes de pena, daqueles que o desqualificam mesmo.
Precisava estar atento aos buracos das ruas e
surdo para certas insanidades ditas. Eram muitos os comentários abraçados com
uma sentença absurda para a minha vida. Na visão desses iluminados, a cadeira
de rodas seria uma espécie de cruz. Então, o meu tempo na terra seria conduzido
por um sofrimento contínuo, a existência só poderia me levar a um inevitável
abismo.
Fala sério,
nunca fui paciente, nem tolerante com quem apresenta miopia afetiva. Ou então,
para os casos graves de cegueira intelectual, também conhecida popularmente
como burrice.
Do outro lado,quando eu menos esperava,fui
acometido por manifestações de gentileza incomuns. Sabe a boa ação preservada
pelo anonimato?O gesto realizado por um rosto estranho ao seu convívio, mas que
tem o poder de lhe transmitir uma nova fé para a humanidade?
Também fui coroado por situações assim. Uma vez,
sem jeito, cansado de tocar a minha cadeira-sempre fui mais Rubinho Barrichello
do que Ayrton Senna- no meio da rua, com o sinal prestes a abrir , surgiu um senhor,que me conduziu ao outro
lado da rua.
Não satisfeito, ele ainda me perguntou se eu
precisaria de ajuda para chegar em casa,se prontificou a parar um táxi para mim
e me auxiliou a dobrar a cadeira de rodas, e a me acomodar com plena segurança.
Somente depois de já estar seguro,dentro do táxi que o senhor prosseguiu com o
seu caminho .
Como esquecer aquela moça bonita, nova,que ao
me ver perdido no shopping veio falar comigo?Ela fez questão de me localizar, e
me conduzir até o meu destino.Nossa,quantas saudades da solidariedade dela. Uma
pena eu ter perdido o seu telefone.
O
privilégio de passar despercebido me foi tirado faz algum tempo.Para muitos, a
deficiência física contraria a ordem,o senso comum dos movidos por verdades
absolutas. A consciência obtida com alguns anos de deficiência é que cumpro uma
função pedagógica.
Os motoristas e trocadores das linhas de
ônibus que pego com frequência sabem da minha condição. Vou demorar um pouco
mais para subir, me acomodar para seguir viagem com segurança e tranquilidade.
O que me felicita é que essa percepção, a consciência do tempo a mais
necessário que eu tenho para subir para o ônibus poderá ser assimilada pelos
motoristas e trocadores das linhas que utilizo mais. Desta forma, o mesmo
cuidado, a mesma atenção será transferida para outra pessoa, com uma deficiência
similar a minha.
Enquanto a diferença não se tornar norma, nós
seremos acolhidos como seres exóticos, excluídos do padrão que renega as
diferenças e move as sociedades. Portanto, nada mais justo que ocupemos o nosso
espaço, e não só ao fazermos valer os nossos direitos civis.
Temos o dever de exercermos uma desobediência
comportamental também. Ser deficiente é uma identidade, o que nos define não é
a falta daquilo que não temos, mas sim a luta constante, diária a fim de
sabermos até onde iremos.
O fato de a inclusão ser uma pauta nova
preocupa o fato de ainda sentimos um senso de aventura presente às nossas ações
mais simples. Andar na rua, ir ao banheiro dos restaurantes são coisas que nos
complicam o viver,mas que não podem nos derrubar.
A solidão, a falta de interação social é um
castigo com o qual nós não devemos aceitar impunemente. Maior que o peso das
adversidades deve ser a nossa firmeza em exercer uma cidadania plena.
Devagar, com suor, nós vamos
evoluir e obtermos muitas vitórias.
Um bom final de ano para
todos!
André Nóbrega.