30 julho 2016

Se não tiver acessibilidade, já pode considerar a minha ausência


   Durante um bom tempo cultivei uma visão ousada,dinâmica quando precisava sair para me divertir.Encarava qualquer situação,por mais desconfortável que fosse.Para combater o tédio,evitar a solidão, valia correr riscos,usar a corajosa prerrogativa de que vale tudo para encontrar pessoas,estar com quem gosto.

   A animação não acabou,nem a vontade de estar junto com a família.O contato com pessoas essenciais ao meu convívio é sempre um motor.No entanto,não vou mais fazer as estripulias de antes,ter de subir escadas com apoio,encarar banheiros como um malabarista.

  A pergunta capital,para saber se o local tem ou não acessibilidade, ganhou outra dimensão.Por mais acolhedores que alguns recantos sejam,mesmo com a considerável carga de boa vontade,afeto e carinho que alguns lugares me ofereçam,não farei nenhuma concessão.

  Daqui para frente,só frequentarei lugares nos quais possa chegar sozinho,circular com autonomia e sair quando bem entender.

  Tal decisão implica severas restrições.Com essa determinação em prática,eu ficarei limitado.Por um bom tempo,riscarei muitas opções já inscritas em minha rotina.

   Para propagar a solidez de um conceito vale à pena ficar mais só?

 Estou seguro que sim.Afinal,a procura por ilhas de inclusão,a busca por um oásis de acessibilidade vai me fazer aguentar a aridez da exclusão.

  Por defeito,ou qualidade,sou teimoso demais para aceitar algumas conveniências.Eu me recuso a ficar acomodado assim,com o quase conforto de muitas das áreas por onde circulo.

 Atravesso desgostoso os contornos mal feitos de muitas das rampas que conheço. Enquanto manejo o meu andador por ruas sem conservação,eu tenho raiva,sinto também vergonha de como o assunto é tratado.

 Estamos inseridos em uma cultura que premia a gambiarra.O fazer malfeito, de qualquer jeito não me satisfaz.

 Nenhuma mudança maciça acontecerá caso continuemos a nos contentar com pouco.

 O mundo nunca vai ser estruturado a partir das normas da ABNT.

Os dez mandamentos no meu momento não são a diretriz.Talvez,valham alguns ideais fixados pela Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos Humanos,formulada pela ONU.

 Mas como essas concepções de cidadania nos escapam.

Não vou fundar nenhum partido político, criar nenhuma ONG ou samba-canção.

Meus amigos, a letra é simples:

‘Se for me chamar para algum evento, alguma reunião, me diga antes como são as condições de acessibilidade do lugar’’.

A resposta precisa ser direta, curta e taxativa.

Com o tempo, se conseguir acrescer opções a esse menu limitado,estarei realizado.

Porque ando com fome para incluir,me conectar com espaços que respeitem,considerem o meu direito de ir e vir.

Mesmo sendo heterodoxo, ainda que a proposição possa soar radical, não custa repetir:

''Se não tiver acessibilidade, já pode considerar a minha ausência''.

Um abraço para todos,

André Nóbrega.

            

23 julho 2016

E por que não falar sobre a cor dos meus olhos?

 Acontece com frequência,a seguir uma regularidade um tanto quanto incômoda.Falo do hábito de amigos e amigas de longa data,que nas redes sociais me marcam somente para fixar posts sobre um tema.São sempre pautas ligadas à acessibilidade.

   É compreensível existir a conexão.Afinal,já não é de hoje que venho exercendo uma militância na área.Pelo menos, naquilo que pode ser chamado da conscientização virtual a favor da causa.Dia após dia,utilizo a internet como fonte para divulgar notícias pertinentes ao tópico,assuntos trazidos à tona com o intuito de prestar informação sobre o universo inclusivo.

  Portanto,é natural ocorrer esse efeito de lembrança,suscitado por um contato virtual meu recente,vindo de algum conhecido com quem tenha pouca intimidade,reduzido convívio social estabelecido.

  Chato mesmo é receber de pessoas com quem tenha estima certa ordem de marcações no meu facebook.São os famosos recados em minha time line,para me mostrar reportagens,artigos sobre a inclusão.

   Através de palavras zelosas,sou marcado mais ou menos assim: ‘’André, já viu a matéria sobre fulano?Também é guerreiro,cara,que nem você’’.Tem também a clássica mensagem:’’Lembrei de você quando li essa matéria,Dé”.

   Fico decepcionado com isso.Pois,para um grupo considerável de afetos, parece que a deficiência passou a ser a única força,o único tema da minha vida.Virei um cantor condenado a repetir uma música só,regido pelo mesmo ritmo,sem grandes variações.

  Tão difícil contar para eles que o andador é um utensílio,muito mais um objeto usado para me locomover.Não é a cruz capaz de luzir uma dificuldade física minha.

  E as lembranças dos outros tempos,de quando não existia a roda de nenhuma cadeira, passaram a não ter importância?

 Ao invés de ser marcado em reportagens sobre deficiências,eu quero ser convidado para festas,churrascos e farras.

 Talvez,surja a necessidade de eu criar outras vivências com essa galera boa.Com certeza,todos querem o melhor para mim.Por algum motivo eles estão asfixiados,presos a uma percepção míope da deficiência.

 O afago é pedagógico,conscientizar pelo abraço,não pela denúncia,a revolta,talvez seja uma virtude recente.

 Vai chegar o dia em que eles vão mencionar sobre a minha adoração à poesia do Vinícius, sobre como adoro contar piadas infames e conseguir ser um legítimo boêmio calibrado por coca-cola.

 Além da militância, que tal lembrar outros aspectos nossos?Vamos variar o discurso, e falar de outras qualidades que temos.

 Por que não falar um pouco sobre a cor dos meus olhos, por exemplo?Só para mudar a letra?

 Um abraço para todos,

 André Nóbrega.
  


17 julho 2016

Nenhuma transformação surge sem alguns gestos kamikazes


 Estava eu, assim, numa tarde chuvosa, mal parado com a minha cadeira de rodas, bem numa rua do centro da cidade onde eu não conhecia muita coisa, mas cuja parca acessibilidade não me animava o espírito.
  
 Era tempos pré-uber,meus amigos,num momento da minha vida onde não estava ainda apto,com condições físicas a permitir a realização de muitas atividades.Mal sabia pilotar minha cadeira direito.Portanto,não conseguia pegar ônibus,muito menos circular por grandes trajetos.
  
  O círculo de programas sociais ficou restrito, os trabalhos os quais eu conseguia executar eram os famosos,alardeados como home office.Uma categorização chique,a esconder uma aguda restrição de possibilidades.
  
  Naquele dia, eu começava a entrar numa fase meio aventureira. Estava predisposto a fazer coisas perigosas para não ser massacrado pela rotina. Muito menos, queria ficar condicionado ao peso das lembranças do passado recente. De como tudo era antes da lesão.

  Tinha consciência do quanto se tornava urgente fundar outra existência.Nada do que havia vivido me servia mais.Assim seria por um tempo.

  Então,quando uma amiga minha me convidou para assistir a um show dela,abracei de imediato o convite.Sabia, de antemão, que por andar em uma área pouco conhecida, e com a ameaça de chuva, as calçadas poderiam ficar escorregadias, e alterar o controle da minha cadeira.

  Creio que nenhuma transformação surja sem alguns gestos kamikazes.A nossa primavera só poderá ser curtida depois do convívio com fundamentais invernos.
  
  A nossa independência, o grito de Ypiranga que quisermos dar, relativo a qualquer área, objetivo nosso, só poderá ser proclamado após cultivamos um senso de rebeldia.
  
  Porque se o ‘’não’’ passa a ser um requisito para várias das ações que vivemos, a força para revertemos tantos placares contrários vem de pequenas insurgências nossas,contra as determinações impostas pelas chances desiguais.
  
   O show da minha amiga foi ótimo. Detestei esperar tanto tempo para um táxi decidir me atender e resolver não me levar. Quando a chuva chegou, baixou desesperança, junto com a raiva por depender da boa vontade de taxistas malandros, um tanto quanto tendenciosos.

  Porém, após muita espera, ao chegar em casa,ficou um sabor de vitória.Porque,de alguma forma,encontrava ali um campo de germinação em favor do ‘’sim’’.

 Como cadeirante, foram 11 quedas, muitos sustos, e uma  certeza.Se eu ficasse no sofá de casa, num diálogo animado junto com as minhas paredes, eu estaria cerceado.Perderia muita da diversão, da parte louca, inesperada dos instantes oferecidos quando alimentamos uma saudável iniciativa de aventura.

 Sem saber como a calçada da próxima rua estará eu sigo, com o mesmo temperamento impetuoso.Somos delimitados pelas lesões, acorrentados por limites o tempo todo.

 Só saberemos onde poderemos chegar se o nosso atrevimento estiver desperto.Isso é uma tarefa sempre complicada e difícil.

 No entanto, existem tantas conquistas a serem obtidas. O nosso lugar nos pódios ainda vazios, mofados pela falta de oportunidades, aos poucos vai sendo ocupado.

 Porque viver a partir do gosto do risco,do improvável é também uma arte.Os atores, músicos, já sabem disso faz muito tempo.

 Não acredito muita na independência sustentada sem uma noção clara de ousadia, coragem para quebrar os limites impostos por nós mesmos.

 Para o castelo, a estrutura de sociedade justa e igualitária a ser feita, o cimento das nossas capacidades, talentos e atributos precisa estar reforçado.

Porque, como diria Caetano Veloso, na letra feita para a música ‘’Divino, maravilhoso’’, do Gilberto Gil:

‘’É preciso estar atento e forte, não tempos de temer a morte’’

Um abraço para todos,

André Nóbrega.


09 julho 2016

A ida na praia que me fez voltar a nascer



 Já havia acordado bem disposto, com o sono abraçado pelos benefícios de uma noite feita para o descanso. A súbita força adquirida incidia um novo humor a minha manhã. Estava fatalmente destinado a fazer algo grandioso naquele dia.

 Quando cheguei às ruas em nada importaram os buracos no chão.A cidade imperfeita,com a acessibilidade pouco planejada não ia conter o meu ímpeto.O desejo de realizar algo inédito era flagrante.

 Vinha uma vontade que conferia coragem e destemor aos movimentos conduzidos. O andador carimbava com o solo um novo abalo, pois os ecos das limitações sofridas, através de mais de sete anos de lesão, não me acompanhavam mais.

 Estava convicto de que deveria ir até a praia. Precisava sentir de novo a comunhão com a areia. Sendo um carioca criado a partir desse rito sagrado, acostumado a conviver com o mar, a ruptura com esse hábito teve o mesmo caráter  de uma violação.

 A experiência da praia, tal como ela era feita até os 30 anos era uma.Pude,através do magnífico projeto Praia Para Todos,ter um outro tipo de contato com a emoção do mar.

 No entanto, o que buscava neste dia diferia do conceito de banho de mar assistido. Amanhecido com uma disposição tão própria, certa quanto aos passos a serem dados, não havia espaço para preencher o tempo com dúvidas.

 Jamais havia tentado usar o andador em cima da areia. Sabia que qualquer manejo mal feito, giro realizado sem cuidado ali poderia resultar em algum tipo de lesão.Mesmo assim, me senti tocado,regido pela coragem, vinculado a um sentimento de proteção.

 Fui devagar com o meu andador por aquela massa fofa. Munido com cautela, levantava,depois,subia o andador.Era capital calcular a força,empreender um contato suave com o solo.

  A areia não era mais um obstáculo, ela voltou assumir a mesma característica de sempre. Por muito tempo a areia foi uma montanha gélida e distante. Era, sobretudo, a lembrança de um tempo feliz, de repente fechado para novas escaladas. Eu olhava para a praia com rancor, por ficar tanto tempo desvinculado da minha identidade.

O barraqueiro amigo ofereceu cadeira, apoio para eu puder me instalar. Pude brindar com mate leão o renascer de um novo tempo.

Por muitas vezes, me julguei incapaz de desfrutar sozinho de um instante assim,de novo.Mesmo tendo ficado parado na cadeira,sem mergulhar na água,a vista do horizonte,o burburinho das ondas a se debaterem no chão me preenchiam.

Enquanto agradecia a Deus por aquele instante, eu jurei também ir ao encontro de toda a proposta de vida capaz de me elevar.

Conquanto que o número de privações impostas seja absurdo, ainda que a quantidade de dificuldades continue elevada, eu jurei ali desenvolver uma atitude mais vibrante de vida.

A deficiência não pode ser maior que o nosso desejo, a nossa gana de preencher nossos caminhos.

Nesta semana, sozinho, eu cheguei pela primeira vez a areia da praia. A vontade de dar um mergulho no mar vai incentivar cada sessão de fisioterapia agora.

Porque quando navegamos pelos ventos das nossas escolhas,quando conduzimos o barco amparado pelo guia da nossa própria vontade, nós iremos atravessar as inevitáveis tormentas com outra resistência.

Sigamos assim, sempre ensolarados com as nossas pretensões.

Um abraço para todos,


André Nóbrega.


03 julho 2016

Somos apenas pessoas,gente.

  Ao longo dos tempos já obtivemos várias classificações, com termos que quando hoje analisados,pareceriam absurdos.Tudo aquilo cujo entendimento foge da denominação padrão,infelizmente,necessitará disso.

 Rotular é preciso,integrar não é pré-requisito.

 É como se uma nomenclatura bem empregada, uma sigla de fácil assimilação pudesse facilitar a quem não possui uma deficiência um entendimento, uma explicação mínima e rasteira do que passamos.
 Aleijado,defeituoso,incapacitado são palavras estrangeiras ao meu cotidiano.Elas em nada traduzem o esforço que efetuo para estudar,trabalhar,e manter com a vida um forte diálogo de participação.
Difícil acreditar que até pouco tempo atrás tais distinções eram empregadas.Pois, acreditem,até a década de 80,essas eram maneiras comuns.E ainda pior,elas faziam parte do vocabulário empregado para nos identificarem.
  Em 1981,houve o Ano Internacional das Pessoas Deficientes,proclamado pelas Nações Unidas. A ação clamou a atenção do mundo para a desigualdade de oportunidades as quais éramos submetidos,visou enaltecer o papel da reabilitação,e o da prevenção de deficiências.
  Devido às repercussões trazidas pela empreitada, o uso da expressão ‘’pessoa deficiente’’ começou a ser usado pela primeira vez. E, assim,foi disseminada,de forma recorrente,a nova alcunha. O termo ‘’pessoa deficiente’’ passou a ser empregado por inúmeros veículos de informação, e ONG´S,entidades políticas compromissadas na luta por nossa inclusão.
  Marco definitivo foi o trazido pela Constituição Federal de 1988, ao intitular a expressão ‘‘pessoas portadoras de deficiência” uma chancela oficial. A iniciativa tinha como objetivo identificar a deficiência como um detalhe da pessoa.Tal expressão passou a encampar todas as leis criadas,as políticas definidas para nos favorecerem.
  Enfim,em 2006,a expressão ‘’pessoa com deficiência’’ foi consagrada pela Convenção sobre os Direitos da Deficiência, da Organização das Nações Unidas (ONU). É com certeza uma maneira de se referir a gente muito mais digna,justa do que nos pautar como inválidos,por exemplo.
  Ainda assim,eu teimo,implico com essa determinação imposta. Acho-a adequada para exigir melhoras ,forte quando precisamos requerer e consagrar direitos.
 A sigla pcd é perfeita para constar em manuais sobre normas de acessibilidade, documentos oficiais e decretos leis.No entanto,considero a expressão ‘’pessoa com deficiência’’ um monumento à impessoalidade.
 Temos sim um direito a singularidade, uma vocação de nos expressarmos como sujeitos autônomos, com vontades próprias.
 Perdemos uma grande chance de sermos reconhecidos pelas nossas qualidades,por aquilo que ressoa quando aceitamos essa determinação sem questioná-la.
 São muitas as partes a nos constituírem.Quantos talentos,capacidades nossas ficam enterradas,deixam de virem à tona quando aceitamos ser reconhecidos por uma expressão que ainda nos desqualifica?
 Ao invés de pessoa com deficiência, por favor, me chamem de André.
 Um abraço para todos,
 André Nóbrega.

 



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