Existe uma bruxa maldita, doida para me derrubar.
O feitiço dessa velha não consiste em poções feitas, boa noites cinderelas
distribuídos às almas desavisadas, ou rasantes panorâmicos com a vassoura feita
para me atropelar. Não, de forma alguma. O poder maligno dessa senhora se
apresenta de outra forma.
Ela tem uma aparência muito mais assustadora
das criaturas enrugadas, narigudas dos filmes da nossa infância. O mal que
falo aqui é diferente da feiticeira que se transformava em cobra, estava
fechada com o capiroto ,e que aparecia no primeiro filme do Conan.A desgraça é
ainda pior do que o botox vencido, mostrado pelas apresentadoras de certos
programas da TV, durante as tardes. Falo aqui de uma maldição presente à minha vida
diária: a bruxa que tira as pedras portuguesas do lugar.
Porque não é possível. Só pode ser algo
sobrenatural haver tantas calçadas assim, mal conservadas, em qualquer lugar, por
todos os cantos onde eu passe. A bruxa sabe os lugares pelos quais transito, e com
diabólica antecedência. Por isso, trata de atrapalhar o meu caminho. Enquanto
não me ver esborrachado no chão, a senhora não vai sossegar.
Não basta apresentar um caminho difícil, é
sempre possível piorá-lo, também. Pois a rua simplesmente complicada pelas
pedras portuguesas pode, de repente, virar uma corrida com mais emoção do que
qualquer Fórmula 1.Basta chover.E,se quando estiver na rua,logo depois de ter começado uma chuva,eu precise passar por um lugar com pedras
portuguesas,você ,então, já sabe quem planejou tudo.Não me surpreenderei se um dia
desses,junto com um trovão, eu ouvir uma risada diabólica.
Tal como a caipirinha, o samba e a
jabuticaba, a bruxa que separa as pedras portuguesas é uma característica do Brasil.
Ao que saiba, pelas informações por mim recebidas, o asfaltamento de tais
pedras em Portugal é diferente. Pelo que consta, as ruas com pedras portuguesas
de lá não possuem o mesmo desnivelamento, a falta de cuidado e manutenção das pedras
que aqui no Brasil existem.
Desde então, com o intuito de quebrar o feitiço,
tirar a influência dessa presença sempre mal intencionada, que me acompanha sempre, eu
adotei uma postura radical.Eu parei de contar piadas a tratarem o Manuel,o Joaquim
e a Maria como personagens. Vai que dá certo?
Uma medida mágica, mas que deveria ser
obrigatória seria a de contar com o esforço do poder público. Daí, talvez, de
forma séria, contundente pudesse adotar um sistema geral de padronização das calçadas.
Tornar a circulação das pessoas uma coisa mais amena, sem que o inconveniente
de tantos espaços ruins, difíceis de andar impeça o direito sagrado (e garantido pela Constituição) de ir e vir.
Eu uso andador e já reclamo da bruxa. Agora,
imaginem com o que precisam lidar os cadeirantes, as pessoas com deficiência
visual e os idosos com idade bem avançada que circulam pelas cidades
brasileiras?Mulheres com salto alto, mães a conduzirem carrinhos de bebês também sentem os
feitiços da bruxa que separa as pedras portuguesas.
E aos amigos que jogam aquele futebol nos
finais de semana, cuidado com as dividas, por favor. Qualquer torção no tornozelo
sujeita a imobilização parcial da área machucada, se for feita por algum gesso
ou tala vai alterar a sua maneira de andar.Aí,então,muito cuidado. Redobre
a atenção ao atravessar as ruas e dobrar as esquinas. A bruxa está sempre
alerta, esperando por qualquer vacilo seu.
Creditar a precária condição de
acessibilidade ao sobrenatural pode funcionar aqui, para uma crônica. A
realidade se impõe de forma bem mais drástica e crua. Mas qual quadro é o mais fantasioso:
um mundo paralelo ,habitado por seres fantásticos que atrapalham a manutenção
das calçadas ou uma realidade feita por ruas que me integrem ,permita que eu ande
para onde quiser, sem me preocupar?
Ainda creio na integração plena, efetiva das
pessoas com deficiência. Mesmo que algumas vezes isso me lembre dum enredo consolidado
por divagações, e devaneios, feito o brilhante cenário relatado no romance
‘’Pedro Páramo’’,do escritor mexicano Juan Rulfo.
A leitura dessa obra foi fundamental para
inspirar o Gabriel Garcia Marquez.Após isso, o escritor colombiano,ganhador do
prêmio Nobel de Literatura em 1982,encontrou novo fôlego ,uma súbita inspiração
para prosseguir com a sua carreira como romancista. Garcia Marquez encabeçou um
período da literatura conhecido como realismo fantástico.
Que a gente nunca perca o prumo para
construir novos caminhos, por mais encrencada, habitada por inevitáveis
empecilhos a nossa estrada se apresente.
Um abraço para todos,
André Nóbrega.