23 março 2019

Olhar a vida, mesmo em meio a buracos

 Muitas quedas habitam o pós-trauma, a quem, por alguma razão, circunstância, teve o curso da existência alterado. Colidido, graças ao surgimento de uma deficiência física.
 Os instantes ganham um peso excessivo. Infinitas as atitudes tramadas, para a reconfiguração posterior do cotidiano. Primeiro, a depender da gravidade do fato, precisa reconhecer o peso da morte, o gosto de mofo.
Você não é mais a mesma pessoa. Ficam dissolvidos os movimentos, presos numa memória de corpo recente. O tempo como péssima companhia, indigesto conselheiro. A comparação com o passado é indevida. O presente não opera, você nada produz, o seu futuro apenas pressente e aguarda pelo caos.
Dando o devido crédito, importância ao luto, a dor de cada um, ocorre uma resolução arriscada. O olhar esfacelado, desconfia dos espelhos, sobretudo. Nadam conta a corrente vários sonhos seus. Ficam erguidas, distantes, na crista da onda, os acenos comuns, de acúmulo risonho, afetivo.
 Mesmo assim, é preciso ir para a rua, buscar no outro algum indício, uma possibilidade de reconstrução. É um momento camicaze. Com cadeira de rodas o jogo muda, por completo. O asfalto como terreno hostil, o perigo presente, tão próximo dos gestos comuns. Atravessar o sinal, com atenção máxima, cuidado para empregar a força correta. Nunca virar a cadeira.
Desviar das calçadas defeituosas, para depois, quem sabe, ser percebido. Considerado, não pelo objeto que o locomove. Valorize, celebre os lugares onde você será reconhecido, festejado pelo nome.
Foi uma sorte imensa, uma cagada cármica, conseguir encontrar um lugar assim, um ano depois da minha lesão: a Síndrome de Miller Fisher.
É um boteco ao lado da minha casa, à época. Um daqueles famosos perto, a se manterem longe. O místico, transcendental oásis proporcional ao tamanho, a dimensão do deserto, da aridez surgida . Embora morador do Jardim Botânico há 20 anos, pouco conhecia o bar Rebouças.
Foi no espaço democrático, de aceitação ampla de um boteco onde eu consegui reconhecer, identificar fragmentos de uma essência esmigalhada, perdida.
E com gargalhadas, camaradagem, coca-cola sendo servida, aos montes, pelo Jorginho, o melhor garçom do Rio.
E muitos amigos, amigas vindo. Pra ficar, de vez. Criar uma corrente amorosa. Dando gás, tônus para os ganhos físicos adquiridos, e tendo a audácia, o despudor de me alimentar com uma certeza : posso olhar a vida, mesmo em meio a buracos.
Vou fazer quarenta anos, no dia 05 de abril. Logo depois, serão dez  anos ,desde o aparecimento da maldita Síndrome, em maio. Por inúmeras vezes, de forma sofrida, vem um tortuoso cenário. Mania de pensar em como tudo estaria, sem o aparecimento da minha deficiência.
Só não consigo pensar em nenhuma perspectiva, definição de felicidade razoável, sem frequentar esse bar.
O playground raiz, favorito de 9 em cada dez moradores, moradoras da área. A missa favorita, palco de jogos sagrados, piadas tolas, muito amor à disposição. Sempre.
Que perdoem a inconfidência, mas escrever essa coluna me deu uma sede....
Goles de solidariedade,  porres de divertimento, com arroubos de inclusão, me aguardam na Maria Angélica, número 197.
Nos encontramos lá?
Um abraço para todos,
André Nóbrega.



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