Quando tive a minha lesão fiquei confinado a
duas prisões. A primeira era definida pela abrupta limitação imposta ao meu corpo. O mundo exterior já não poderia mais ser descoberto,percebido como antes.Foram muitos meses nos quais a movimentação ficou bem restrita. De repente, não
conseguia mexer quase nada do pescoço para baixo.Como resultado disso,eu fiquei
sujeito a um segundo confinamento.Fiquei preso ao meu próprio corpo,diante de muitas lembranças de como a vida havia sido até então.
Nos primeiros momentos após a lesão tudo foi
muito difícil. Eu tive que desenhar em meu imaginário outro modelo de existência,
até para conseguir suportar a nova realidade que me foi imposta. Um dos
recursos usados era o de fechar os olhos, lembrar somente daqueles instantes de
intensa felicidade.Foi feita uma edição, habitada somente pelos meus melhores momentos percorridos.
Outra coisa fundamental foi a visita dos amigos,
amigas e o apoio incondicional da família. Mesmo assim, o cotidiano me reservava
privações,no mínimo,incômodas. Tomar banho,ir ao banheiro eram tarefas que eu
não poderia fazer sozinho,por exemplo.
Era comum eu ser aturdido pelo mesmo sonho, que
quando eu acordava se materializava como um autêntico pesadelo. Por muitas
noites,eu via o meu corpo correndo,levantando, a fazer tudo o que fazia até um
tempo recente, antes da minha lesão. O pesadelo era ter que acordar e ficar
paralisado diante da minha realidade.
Passados quase sete anos foram muitos os ganhos
físicos acumulados. Mesmo assim, ainda carrego comigo certas limitações.Essas
barreiras,porém,mais têm a ver com uma perspectiva limitadora do que com a
competência atlética de fazer ou não certas atividades.
Por termos dificuldades para trafegarmos pela
rua, usarmos o transporte público com segurança, conforto, nós acabamos por
escolher as regiões mais seguras para andarmos. O que é uma decisão pertinente,
tendo em vista que a falta de acessibilidade de certos locais nos coloca em
perigo. Mas ir sempre aos mesmos lugares também não enche o saco?Não temos o
direito de arriscarmos e conhecermos novas opções de lazer?
Na última sexta-feira eu fui presenteado. Consegui
voltar ao Circo Voador, assistir a um show da melhor qualidade, na companhia de
amigos referenciais em minha vida. Para o Rio de Janeiro, o Circo Voador é um
local sagrado. E isso ocorre não somente pelas atrações que ali se apresentam, mas
pelo clima obrigatório de alegria, bem estar com os quais a plateia fica
imediatamente elevada.
Fazia uns nove anos que eu não ia ao Circo. Não
considerava mais esse recanto da diversão em minha rota particular. Julgava que
seria difícil de chegar, muito complicado permanecer no lugar, e improvável conseguir me divertir lá como fazia antes.
Estava enganado. Nada obstruiu o meu prazer.
A chuva não atrapalhou, a galera que se reunia nos lugares cobertos mais me
acolhia do que atrapalhava. O uso do banheiro adaptado era garantido,
salvaguardado pelos funcionários do Circo. Nenhum esbarrão foi capaz de
diminuir o meu entusiasmo. O sorriso estampado configurava o fim de uma era.
Algumas crenças têm o poder de nos engessar, conseguem tolher as nossas capacidades e obscurecer as nossas potencialidades mais incríveis.
E tão sagrado quanto o direito de ir e vir é o dever de brindarmos à vida.
É fato que temos uma penca de limitações, que
os cuidados a serem tomados precisam ser redobrados. No entanto, a precaução jamais
pode tolher o nosso desejo por diversão nova. Quando o tédio bater as nossas rodas,
precisamos ser tão cuidadosos quanto aventureiros.
Porque o poder das surpresas pode ser reparador.
Na última sexta-feira, eu pude reencontrar uma antiga vizinha que é sinônimo de
celebração.Ela,além de ter uma alma de trio elétrico,é alguém capaz de sempre
elevar os ambientes,contagiar os amigos com a sua
presença.
Quando penso na última sexta-feira no Circo
Voador fica uma certeza. As portas da prisão já estavam abertas fazia um bom tempo.
A verdade é que eu me contentava em ir ao pátio, e depois tomar algum banho de sol
diário. A liberdade das ruas,embora algo possível,não foi ainda alcançada de
forma plena.
Nós temos muitas prisões para escaparmos. E
cumprimos muitas penas movidas por suposições. A limitação física não define
quem a gente é,talvez,indique a necessidade de cuidado para percorrermos certos
caminhos.E ser precavido não nos impede de usufruir a riqueza da existência,
só nos obriga a sermos criativos e a andarmos com pessoas especiais, que além de gostarem
da gente,tenham essa intimidade com a
vida.
Não posso acabar o texto sem agradecer ao
Cafi, a Deborah Colker e a Bá Rosalinski pela luz , por me ajudarem a sair de
uma prisão que eu não pretendo voltar nunca,mas nunca mais mesmo.
Um abraço para todos,
André Nóbrega.
Muito legal.
ResponderExcluirPrisão nunca mais.