28 maio 2016

Precisamos falar sobre a paquera.



  O sábado à noite é um tempo peculiar, feito para estarmos com quem gostamos. O dia frio ,para os casais cúmplices do seu afeto,serve para fixar aquela dimensão prazerosa do aconchego .

  Bom para quem está nessa. Não é o meu caso. Caso contrário, lhes garanto, não estaria aqui elaborando esse texto.

  Estar solteiro é bom quando é uma escolha. Fica danoso quando se torna um hábito. Pior é quando fica nítido constatar que muito dessa solidão provém da minha deficiência.

 Para melhor explicar, alguns aspectos sociais ficaram prejudicados com a minha lesão. Sempre gostei de ler ,acumular informações acerca de variados assuntos, e,por consequência,bater um bom papo.A minha capacidade de seduzir sempre dependeu da palavra.

  A voz, o equilíbrio, e a coordenação motora fina foram as regiões mais afetadas pela mal conhecida e perigosa Síndrome de Miller Fisher. No início da minha lesão, como tática de paquera, sem a voz de outrora, não sabendo como me virar como cadeirante, resolvi adotar a canalhice como modus operandi para a conquista.

 De forma intencional,quando ia para uma festa,para algum lugar onde não fosse conhecido, eu estacionava a minha cadeira de rodas num canto.Depois,fazia uma cara de cachorro abandonado.Não demorava muito para chegar uma alma caridosa ,e perguntar:”O que houve com você?”.Ou mesmo o clássico:’’Tá tudo bem contigo?’’

 Visto que a clareza da fala não era lá essas coisas, tornava-se fundamental uma aproximação da moça, para eu poder explicar com minúcia de detalhes o meu drama infindável.Nossa,eu mentia bem .Falava que havia acordado diferente,com a certeza de que naquele dia eu conheceria alguém capaz de mudar a minha vida.

 Aceitei ser um cadeirante objeto numa boa. Acolhi a aproximação das desconhecidas sem problema algum, através de uma armadilha ensaiada. A soma da cara coitado com a minha história triste, contada ao pé do ouvido, foi uma tática vencedora.

 Na cadeira todos esperavam uma reação X de mim. A partir daí, ficou mais fácil estabelecer um papel como defesa.Com o andador, o olhar dos outros é fixado por uma indefinição. Por não ser cadeirante, nem andante, a falta de capacidade de me rotular talvez confunda.

 Acontece que a necessidade de estabelecer laços íntimos é uma necessidade saudável,comum a todos nós.

 Tenho dificuldades de chegar nos lugares e nas mulheres que não conheço.O olhar desqualificador,de pena, anestesia boa parte das minhas ambições.

 Talvez,também esteja problematizando demais a questão.Será tudo culpa do frio???

 Agora é o tempo para descobrir outras possibilidades de conquista para o andador. Embora sejamos muito mais que o objeto utilizado para nos locomover.

 Para o deficiente físico a cadeira de rodas, o andador, a muleta, ou bengala é parte integrante,fundamental ao nosso cotidiano.

 Contudo, se vamos conviver com um utensílio essencial para a nossa sobrevivência, por que também não atribuir um caráter menos formal,válido inclusive para paquerarmos,ao nosso meio de transporte?

 Descobri que a cadeira de rodas é ótima para dançar forró.Na semana passada eu consegui dançar funk com o andador.

  Espantei metade da pista com a ousadia. Preciso pensar em outras situações.

 Já é um começo.....

 Um abraço para todos,

 André Nóbrega. 


21 maio 2016

Carta para o amigo que acaba de sofrer uma lesão

   
  Nunca em sua vida houve um tombo tão poderoso. O contato com o chão veio com uma força avassaladora. A queda o pegou de surpresa, e agora o prolongamento do luto parece ser o único caminho possível de ser habitado. Será esse o tom dos seus dias, meu amigo. Por um bom tempo a tristeza o acompanhará.

  Porque é impossível você não se apavorar com o que a vida poderá lhe oferecer agora. A comparação com o passado, a lembrança de como a sua vida era antes de ser deficiente será uma prisão. A perspectiva da sua vida ficará travada, pois agora você está tentando se preparar para um novo tipo de existência.
  
  A família sofre junto contigo. Os seus amigos não sabem muito bem como reagir, e você também não poderá traçar um prognóstico de como ficará a sua vida.
  
  Chore, mas se possível, ao fazer isso, verifique se não haverá ninguém por perto. Crie,se possível, uma hora do choro. O momento no qual você sabe que ficará sozinho. A minha hora do choro era cumprida antes de dormir.Não queria que nenhum parente meu participasse daquele ritual.

  Afinal, ali, eu começava a me despedir da outra vida. O que era possível fazer antes da lesão precisaria ser abandonado, ou passar por uma radical transformação.

  Porém, em dado momento, as suas lamentações, após sedimentarem a função essencial de luto, passam a alimentar uma mágoa. Você, sendo cadeirante, por exemplo, logo perceberá o quanto o mundo  parecerá inabitável para você.

  A grande virada acontecerá a partir de uma mudança de percepção. Quando você estiver possesso, com aquela sensação de extrema raiva, por não conseguir atravessar a rua,usar um banheiro público,saiba que esse sentimento é normal.E sim,essa frustração,sentida de forma recorrente, poderá ser pedagógica.

 Caso você tenha ficado cadeirante agora, não perca tempo. Faça uma pesquisa, identifique a associação de pessoas com deficiência perto do bairro, da região onde você mora. Nós somos um movimento organizado, com ampla disponibilidade para ouvir, acolher todas as suas dúvidas, as suas questões sobre essa fase da sua vida.

 Você nunca estará sozinho, meu amigo. Somos uma nação com mais de 45 milhões de pessoas com deficiência.

 Precisaremos de você para juntar forças, esforços e ações na marcha que visa a nossa integração plena, com o reconhecimento dos nossos direitos e deveres.

 Vamos lá, tem tanto trabalho a ser feito, tanta gente bacana que você precisa conhecer, que não dá mais para você ficar aqui, somente lendo esse texto. 

 Meu amigo, ao invés de ser um simples leitor,que tal ingressar nessa luta?´

 Nós conseguiremos juntos plantarmos sólidas sementes de um mesmo sonho.

 Eu estou certo que a luta só tem a ganhar com a sua adesão à causa.

 Sigamos firmes, há uma estrada longa que precisa ser construída com rigor e dedicação.

 Precisaremos de aliados, pois haverá uma luta interminável pela frente.

 Um abraço para você,


 André Nóbrega.


15 maio 2016

Sobre a eterna chatice de servimos como exemplo



 Nós não temos a obrigação de sermos exemplo para ninguém.Muito menos,devemos sustentar o fardo contínuo de servirmos como inspiração para os outros.Sim,porque a conta nos pesa,bate de uma forma bastante desigual.

 Pois, se para realizarmos as tarefas mínimas,indispensáveis para nos prover cidadania e dignidade é necessário um esforço gigantesco,isso ocorre devido a precariedade dos serviços,das ações do Estado capazes de nos auxiliarem.

 Queria utilizar menos esforço para andar pelas ruas do meu bairro.Queria transitar por aí,pegar ônibus,aproveitar a noite revestido por algumas seguranças.

 Seria lindo me locomover pelas ruas do Rio de Janeiro em paz,sem olhar para os buracos.

  As minhas opções de lazer ficariam enriquecidas caso os gestores culturais tivessem sensibilidade ao tema.
  
  Para obter uma rotina produtiva o meu esforço será maior.Essa força a mais para realizar tarefas simples é uma condição necessária para sobreviver.

 Contudo, o que costuma impressionar as pessoas não é falta de igualdade das oportunidades que sofro,mas sim o esforço fora do comum necessário para executar tarefas que deveriam ser simples.
  
 O foco está errado.Ao invés de enxergarem o problema como um todo,muitos preferem exaltar parte da questão que nos atinge.

 Para nossos amigos, parentes e conhecidos,por uma questão de carinho,genuína admiração,é comovente acompanhar o nosso esforço para participamos da vida.
  
 Porém,o problema é quando essa mesma visão atinge a mídia,o modo como o mundo nos vê.

 Antes de ser um guerreiro,eu sou um cidadão brasileiro.Alguém com direitos e deveres garantidos,mas com outras capacidades que precisam ser reconhecidas,também.

 Nem todo caminho precisa ser cumprido com o fervor,o fôlego de um maratonista.Se muitas vezes o cotidiano nos detona o corpo,faz com que tenhamos a persistência como um pré-requisito obrigatório,é porque não possuímos tantas escolhas para vivermos.

 E,para ser sincero,eu não tenho muita paciência em habitar o status de exemplo,cultivado na mente de tanta gente que admiro.Ao construírem um altar,e fixarem o suor como algo sacro,eles se esquecem,por exemplo, do que é necessário fazer para melhorar as coisas.

 Como confiam demais nessa força de superação, acham que sempre haverá uma mitológica maneira de passar pelas dificuldades. Isso pode ser verdadeiro para o Indiana Jones,o James Bond ou para o super-homem.

 A maior inspiração é a luta pela integração da pessoa com deficiência.

 Para quem insistir em nos colocar num degrau acima,para os que teimam em nos atribuir dons extraordinários e esquecem de considerar aquilo de mais básico do que nos falta,recomendo somente isso:a leitura de autoajuda e a ida ao cinema somente para verem filmes açucarados.

Por favor,a realidade não é assim.

Um abraço para todos,

André Nóbrega. 


07 maio 2016

A prisão do quase tombo

  Um tombo pode ser pedagógico.Cair da cadeira de rodas ,do andador, do trono que ocupamos por ficarmos levitados pelo orgulho pode nos educar.A queda,desde que não nos machuque,não traga um dano físico grave ,por  vezes, nos ensina alguma coisa.
  
 Foram 11 quedas com a cadeira de rodas. Algumas se validaram como noções de como deveria me comportar ,sobreviver aos tempos em que vivi como cadeirante.

  Certa vez,enquanto era ajudado por duas pessoas a descer uma escada,a cadeira escapuliu da mão do rapaz que me ajudava e soltou.Embora não tenha sido um choque sem grandes repercussões,a mesma pessoa que deixou a cadeira cair,veio puxar o meu braço com uma força exagerada.O cara quase me quebrou quando tentava me auxiliar...rsrs

   Já quando fui ajudado a atravessar a rua por um conhecido,conduzido para atravessar a rua com a cadeira de rodas tive outra colisão.O choque produzido pelo bico da cadeira e o meio fio da rua me arremessou na calçada.As pessoas vieram ao meu socorro como se tivesse capotado de um caminhão caído de um desfiladeiro.Do tombo da escada ao choque na rua ficou uma lição.
  
 Após a queda,depois de checar se havia me machucado ou não,deveria também informar as pessoas ao redor que eu estava bem.Se possível,contar até alguma piada infame,tal como esta:se eu caísse não teria problema ,pois do chão não passaria.Ou ainda dizer que se a Lei Seca me parasse poderia ser autuado por direção perigosa,e ter a cadeira de rodas apreendida.Essa estratégia se mostrou eficaz para muitos tombos.

 Problema maior verifico nas vezes em que quase caí.Nos momentos onde eu antevi uma queda.Foram situações de puro instinto e reflexo ,nas quais devido a observação prévia da falha mecânica do andador, eu impedi um beijo com a lona.Ou,para ser mais objetivo,nas vezes,nos instantes antes da roda do andador cair,ou de parte dele se espatifar no chão,e, assim,eu me livrar de um tombo.

 Mas,peraí,se livrar de uma queda não é uma coisa boa?Deveria ser.Porque na minha cabeça teimosa acho mais sólida a contundência de um não.

 Cair,depois,na medida das nossas possibilidades,tentar se levantar é uma condição da vida humana.Porém,ficar na eminência do quase tombo é chato demais.

  O quase tombo me afeta psicologicamente.A pedagogia da queda fomentou boa parte dos meus anos pós lesão.Não caio,mas,também,como o andador em tais circunstâncias fica inutilizado,eu não posso dar um passo adiante.Fico refém da sorte,carente da ajuda de terceiros e obrigado a me acostumar por alguns momentos com a imobilidade.

  No último mês vieram duas situações de quase tombo.Sinceramente,não tenho a menor ideia de como lidar com isso.Ficar encostado num muro,a me equilibrar e depois buscar uma solução não é o problema.O pior é a sensação de impotência,fraqueza que isso gera. 

 Afinal,com a qualidade desses equipamentos ,a transitar por uma metrópole de péssima acessibilidade como o Rio de Janeiro, será que haverá oportunidade de existir uma terceira quase queda???

 Já fiquei um tempo só mexendo pescoço,três anos e meio como cadeirante,e uso o andador faz algumas primaveras.Sempre lutei contra o confinamento social.Busco na rua um complemento para validar a minha experiência existencial.

 Ao lado da solidão de ficar em casa,a prisão do medo foram sempre fissuras capazes de me diminuir.O problema do quase tombo é me tornar um refém do acaso,também contribuir para querer diminuir o meu ímpeto pela vida.

Por isso,preferia a queda.Daí, depois,era só prosseguir,mais receoso com certos cuidados.O quase tombo me coloca diante de uma série de gravidades,tragédias que poderiam ter acontecido caso a minha roda tivesse saído em um outro momento.Afinal,como teria sido se eu não tivesse percebido isso antes de arrevessar a rua?

Odeio certas metades,os pedaços de falta silenciosos,capazes de gerarem dúvida e alimentarem o vazio.

O maior sim da minha vida é aquele que vem corroborar a  luta pela inclusão da pessoa com deficiência.

Do resto,quase nada ficará.

Um abraço para todos.


André Nóbrega. 

01 maio 2016

Depois daquele dia

‘’Ninguém pensa no apêndice a não ser quando chega a hora de operá-lo’’

  Henry Miller, página 98 do livro ‘’Sexus’’.

  Gostaria muito de pensar somente na apendicite nesse momento. Porém, foi a partir dessa operação que adquiri a minha lesão neurológica.

  Depois de uma operação de apendicite eu tive uma interação medicamentosa. Houve um choque na química do meu corpo, e por consequência, a minha imunidade baixou muito.

 Então, me tornei uma presa fácil para uma bactéria oportunista atingir o meu córtex cerebral, uma espécie de meio campo do cérebro. O córtex cerebral é responsável pela fala, pelo equilíbrio e pela coordenação motora fina.

  No dia 13 de maio farão sete anos da malfadada operação de apendicite. A cada ano que passo eu presencio emoções variadas nessa data.

 Para quem tem uma lesão adquirida,não congênita, a data na qual o acidente, o tombo, ou a operação que,de súbito,alterou o curso da nossa existência, jamais passará desapercebida.

 Os últimos sete anos foram intensos, galera. Assim é com todo mundo que precisa conviver com a deficiência. A delimitação física surge assim, sem pedir licença e com capacidade de mudar a nossa vida pelo avesso.

 Quando a deficiência surgiu não tive opção. Ou abraçava um movimento de reconstrução, ou ficava pelo caminho. Desde então, boa parte do que serviu para a vida até os 30 anos precisou mudar. E na marra.

 Nem tudo o que foi vivido nesse tempo serviu como enredo para bolero. Os motivos para o riso foram buscados com avidez. Embora inicialmente complicados de serem identificados, os momentos dignos de brinde foram considerados sagrados.

  Nunca a companhia das pessoas que amo foi tão urgente e prazerosa.

  Definitivamente, o que mudou para melhor foi ter descoberto uma causa tão nobre. Desde quando passei a encampar a luta pela inclusão da pessoa com deficiência, os horizontes se ampliaram.

  Porque estamos em busca do mesmo sol. Afinal, após tantas lutas e revindicações sendo repercutidas pela sociedade, a longa noite da falta da acessibilidade vai perdendo espaço.

  O sol nasce para todos. E a luz irradiada por nossa luta contagia muita gente.Somos mais de 45 milhões de pessoas sedentas por mudanças.Formamos uma nação com o mesmo fundamento e credo:a inclusão plena ,irrestrita da pessoa com deficiência.

  O dia 13 de maio é sempre um dia carregado por um tempero amargo. Contudo, sempre restarão 364 dias no ano para consagrar a nossa luta.

  Sigamos fortes, lúcidos em defesa dos nossos direitos.

  Um abraço para todos,


 
André Nóbrega. 

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